Sonho e Memória

Publicado em

27/01/2021 15h30

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Artigo

 

Em uma dessas madrugadas da pandemia, sonhei que eu estava folheando um diário não publicado de Elisabeth Bishop. Em meu sonho, eu virava as páginas de seu caderno grosso e espiralado com arame preto, em cada página muita escritura talhada à mão – poemas e anotações e borrões feitos com tintas de cores preta, verde e vermelha. Direcionado por uma espécie de roteiro, o meu olhar passeava lentamente por inúmeras fotos do  cotidiano da poeta, fixadas por tirinhas curtas de durex, em páginas feitas de cartolina e construídas por mãos de menina, de mulher. O que era fato entrava no que era sonho e eu, fascinado, examinava silenciosamente aquele material de memória produzido pela escritora, quando ainda morava no Rio de Janeiro, ao lado de sua mulher, Maria Carlota Costallat de Macedo Soares. Eu me perguntava, em meu sonho, com que direito eu espionava partes da vida privada daquela escritora. Já te aconteceu sonhar com gente importante? Pois é, eu sonhei. E ainda me perguntava se outras pessoas, entre os meus conhecidos, bisbilhotavam, mesmo que no mundo onírico, a vida de gente como Ray Bradbury, George Orwell e Pedro Nava.

 

Ao tentar explicar tal sonho, devo confessar a grande adoração que eu tenho pelo poema A Arte de perder, de Elisabeth Bishop. Poema que eu já cometi a loucura de recitar para grandes e pequenas audiências, em aulas e conferências. É um poema que trabalha a ideia de que devemos nos educar para as perdas e para o luto como fatos inexoráveis em nossas trajetórias de vida. Com incrível precisão e até simplicidade, Bishop nos aconselha: “Perca um pouco a cada dia. / Aceite austero, a chave perdida, a hora gasta bestamente. / A arte de perder não é nenhum mistério”. Já acordado, perguntei-me por que lembrei em sonho dessa poeta? Qual a razão de tal especificidade das memórias de perdas naquele sonho?

 

Mundo enlutado

Sei que neste ano, tivemos um mundo enlutado. As perdas de todo o tipo se impuseram com uma força e velocidade nunca vista para as pessoas de minha geração. Em um contexto de incerteza e desconhecimento, o vírus chegou devastando vidas, empresas, empregos e vínculos. A palavra perda se expressou na morte de milhares de brasileiros, muitos deles pessoas próximas. E a morte nos roubou tanta gente. Um amigo, um parente, um colega de trabalho, um conhecido, alguém que se tinha notícia. Eu perdi o meu irmão, Romildo, enterrado sem que processássemos, como família, o ritual do luto. Todo este conjunto de perdas é um estímulo para que acordados ou dormindo procuremos em nossas memórias uma narrativa, em prosa ou poesia, em palavras, imagem ou música, que nos dê algum sentido, algum significado, ou não, àquilo que nos destroça. Tudo seria insuportável ou insuperável se não tivéssemos como companheira as Artes e suas musas. Imagine este mundo, sem Mnemosine, sem Clio, e nós nus de memórias e de narrativas construídas a partir delas. Narrativas, entre outras, fundadoras baseadas nas origens ou aquelas expressas em lugares de memórias familiares e sociais, como os inúmeros memoriais, onde os números de mortos ganham nomes, onde são contadas as suas histórias, restaurados os seus vínculos e os seus afetos. Na Europa, nos Estados Unidos, em quase toda a América Latina, temos exemplos institucionais desses memoriais destinados a dar vida a desaparecidos políticos, em contextos de ditaduras, em situações de guerras e de escravidão. Representações de políticas de governo destinadas à reparação estão construídas em pedra, terra, água e luz em memoriais como o do Vietnã, em Washington, o Museu da Escravidão, em Liverpool, a Pinacoteca do Povo, em São Paulo, o Memorial do 11 de Setembro, em Nova Iorque, e o Museu da Memória, em Buenos Aires. Lugares destinados a rememorar, homenagear aqueles que foram sacrificados pelos agentes da intolerância e do extremismo. Estive em todos esses lugares de memória, e confesso que vi ali a banalidade do mal, descrito por Hannah Arendt. Será que em algum dia, veremos, em nosso país, memoriais, lugares de memória, destinado a reparar a lembrar os milhares de mortos atingidos pela pandemia do covid-19? Será que em algum dia, presenciaremos o acontecimento da responsabilização dos criminosos que alimentaram intencionalmente políticas que negaram o conhecimento humano, a Ciência, as decisões da Justiça, destinadas a, no mínimo, mitigar as perdas de milhares de vida na pandemia? Eu luto por isto e espero que sim.

 

Henri Bergson, em sua obra, concebeu a ideia de memória involuntária, aquela que brota sem que façamos uma esforço, uma operação consciente de memoriar. Assim, acredito que a memória de minhas perdas vieram, de uma forma bergsoniana, deste meu vínculo, livre, na madrugada, antes que o galo cantasse,  com a poesia de Elisabeth Bishop. Esta memória que me fez aprender um pouco mais da Arte de Perder, para continuar vivendo.

 

 

Paulo Nassar

Professor Titular da Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP), Coordenador do Grupo de Estudos de Novas Narrativas (GENN ECA-USP) e Diretor Presidente da Associação Brasileira de Comunicação Empresarial (ABERJE).

Clotilde Perez
Professora universitária, pesquisadora e consultora
Clotilde Perez é professora universitária, pesquisadora, consultora e colunista brasileira, titular de semiótica e publicidade da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, concentrando seus estudos nas áreas da semiótica, comunicação, consumo e sociedade contemporânea. Fundadora da Casa Semio, primeiro e único instituto de pesquisa de mercado voltado à semiótica no Brasil, já tendo prestado consultoria nessa área para grandes empresas nacionais e internacionais, conjugando o pensamento científico às práticas de mercado. Apresenta palestras e seminários no Brasil e no mundo sobre semiótica, suas aplicações no mercado e diversos recortes temáticos em uma perspectiva latino-americana e brasileira em diálogo com os grandes movimentos globais.