Sobre causas, marcas e consumidores

Publicado em

17/03/2021 14h00

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Artigo

 

Alguns dos mecanismos estratégicos da publicidade têm passado por significativa revisão, seja no repensar da ideia dominante da mensagem, nos atributos associados à imagem de marca, no posicionamento imutável ou nos valores que lhe concederiam as láureas de uma lovemark. Tais ressignificações põem abaixo muitos dos princípios que regeram a atividade publicitária ao longo das últimas décadas, e que as fizeram romper com paradigmas históricos e hegemônicos.

 

Mesmo não constituindo fenômeno recente, foi sobretudo a partir das duas primeiras décadas deste século que o discurso social ganhou voz no meio publicitário, e a epistemologia do campo reconheceu tais mudanças, inclinando-se sobre narrativas “engajadas” para observar os valores assumidos pelos discursos de marcas que se posicionam como de caráter social – e, às vezes, político e/ou ideológico. Ativismos que passam a dar visibilidade à diversidade e à defesa de causas, mesmo que nem sempre tais bandeiras pareçam plenamente adequadas às suas estratégias comunicacionais, coerentes aos seus valores marcários ou aderentes ao repertório de seu público, o que contribui para gerar polêmicas e insurgências – ou, minimamente, meras inconsistências discursivas e de posicionamento.

 

A marca, na ânsia de evidenciar seus propósitos, parecer-se empática e a fim de causar algum efeito de transformação social por meio de seu discurso publicitário, busca influenciar a percepção de seu público e engajá-lo, em contradição às expectativas mais realistas da capacidade de influência da própria publicidade – seja por ela servir apenas para pautar ou discutir temas e tendências, para promover o consumo ou não dispor, na verdade, de novidade formal ou retórica suficientes para transformar a sociedade em níveis mais profundos e duradouros.

 

Para uma compreensão mais precisa do entorno em que se estabelecem as interações entre marcas e consumidores na contemporaneidade, e como se posiciona esse público que consome a marca – material ou simbolicamente – em situações-limite que envolvam posturas e atitudes marcárias que extrapolem o campo das relações de consumo, faz-se necessário refletir sobre o consumerismo. Grosso modo, de um lado, haverá aqueles que irão se abster de consumir a marca ou mesmo a denigrir como forma de protesto, promovendo o boycott. De outro, haverá aqueles que flexibilizarão sua condição consumerista e irão, deliberadamente, comprar e promover os produtos de uma empresa em apoio às suas políticas, proporcionando o que se denominou buycott. Seria essa mais uma das dicotomias comuns ao contemporâneo?

 

Aliada às causas em si defendidas, a forma de gerar engajamento do respectivo público a esses discursos solidários está diretamente associada às histórias contadas por essas marcas. Assim, o conteúdo de marca (branded content) deve se pautar nos possíveis processos de transformação social, nas políticas de desenvolvimento sustentável, no consumo responsável, dentre outras frentes – todos esses elementos-chave de uma publicidade contemporânea que representa e defende causas. Essa busca incessante por demonstrar formas de contrapartida à sociedade é fator-chave para a publicidade com e de causa.

 

A identificação de demandas dos consumidores atentos às questões sociais, políticas e ideológicas das marcas, somadas à sua visão cidadã e à lógica consumerista, estão se refletindo em efeitos sobre a atividade publicitária, tendo em vista que a defesa de causas pode repercutir nos capitais econômico, social, cultural e simbólico das marcas, seja a partir de um altruísmo genuíno – ainda que utópico –, seja decorrente de um oportunismo pontual – quase sempre perceptível. Evidentemente que se o propósito da marca e sua coerência discursiva coadunam seu conteúdo publicitário e sua prática corporativa, aos olhos dos consumidores, haverá reconhecimento e empatia suficientes para resultarem em vultosos dividendos aos capitais da organização. Celebra-se, então, entre as partes – consumidores e marcas –, uma espécie de acordo tácito, quando mesmo que não declarem suas reais intenções, ambas se apresentam proativas para a manutenção de suas relações, ou ao menos, enquanto assim lhes aprouver.

 

 

Rogério Covaleski

Professor e pesquisador do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco. Líder do Grupo de Pesquisa Publicidade Híbrida e Narrativas de Consumo (PPGCOM-UFPE/CNPq). Coordenador do GT Consumos e Processos de Comunicação (Compós). Autor dos livros Cinema, publicidade, interfaces (2009); Publicidade híbrida (2010); Idiossincrasias publicitárias (2013); Cinema e Publicidade: intertextos e hibridismos (2015); Da Publicidade ao Consumo: ativismos, reconfigurações, interações (2020). É Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, com pós-doutorado em Conteúdo de Marca na Universitat Pompeu Fabra (Barcelona).

Clotilde Perez
Professora universitária, pesquisadora e consultora
Clotilde Perez é professora universitária, pesquisadora, consultora e colunista brasileira, titular de semiótica e publicidade da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, concentrando seus estudos nas áreas da semiótica, comunicação, consumo e sociedade contemporânea. Fundadora da Casa Semio, primeiro e único instituto de pesquisa de mercado voltado à semiótica no Brasil, já tendo prestado consultoria nessa área para grandes empresas nacionais e internacionais, conjugando o pensamento científico às práticas de mercado. Apresenta palestras e seminários no Brasil e no mundo sobre semiótica, suas aplicações no mercado e diversos recortes temáticos em uma perspectiva latino-americana e brasileira em diálogo com os grandes movimentos globais.