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O que significa cancelar o Estrogonofe?

Publicado em

16/03/2022 08h30

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O que significa cancelar o Estrogonofe?

 

Clotilde Perez

Professor titular de semiótica da ECA USP

 

 

Demorei para acreditar quando li a notícia “Bar da Dona Onça retira estrogonofe do menu em protesto à guerra”. A chefe-proprietária manifestou sua repulsa culpabilizando e penalizando o prato de origem russa, popularizado em muitos países europeus, nos EUA e por aqui também. Já tinha sido tomada de surpresa com as notícias de cancelamentos de concertos com músicas de Tchaikovsy, autor de clássicos da música erudita russa, como o Lago dos Cisnes, disseminados em todo o mundo para o deleite de milhões. O que isto significa? Um prato típico, uma obra prima da música, são expressões culturais e artísticas, criações humanas que encontraram aceitação, gosto e prazer sensível, manifestações do extraordinário de que somos capazes. Cancelar, boicotar e afins demonstram intolerância e mais, desejo de repercussão midiática no típico “aparecer bem no outdoor”, ser contra a guerra, sinceramente, não é mérito de poucos. Antes de mais, já atesto aqui, também sou contra a guerra e qualquer tipo de sofrimento provocado, agora, antes e depois, mas também sou contra a hipocrisia, o narcisismo desmedido e os deslumbramentos e ressentimentos infantilizados de líderes inconsequentes que causam conflitos e guerras, sempre desnecessárias, se houvesse o princípio do diálogo e a tão falada empatia.

De um lado, e são muitos os lados, um líder autoritário, completamente desenfreado, que não recuará, como pode ser constatado apenas com a atenção fixada em seu olhar. A tradição de seguir adiante, derrotar o “inimigo” e não recuar, fez com que a Rússia tivesse papel determinante na II Guerra Mundial e assumisse protagonismo decisivo na libertação da Europa, ainda que não haja “um” europeu que reconheça isso (a publicização do dia “D” foi boa). Putin, ameaçado e cercado pela OTAN, que aliás há décadas perdeu o sentido pelo qual surgiu, acredita estar em uma cruzada para resgatar o orgulho e a grandeza do povo russo; para ele não é conquista de território, mas status identitário. A hipocrisia vem do outro lado, mais distante, um presidente desesperado por uma guerra, na sua tradição histórica de interesses econômicos, inclusive de usar mentiras para destruir países bem distantes de suas fronteiras; um presidente que ganhou fôlego na medida em que o conflito faz com que seus cidadãos se esqueçam da crescente inflação, da sua miopia como estadista e de quão fraco ele é, além dos interesses e esforços para mudança na estrutura energética mundial, com a qual o país tem muito a ganhar. Um outro presidente deslumbrado com Hollywood, com o sonho americano e o american way of life de outrora. Nutre a certeza de que em breve poderá ser contratado para estrear um programa de entrevistas com humoristas da gringa ou um filme de heróis, desde que seja à moda antiga, herói sem crise existencial. Inconsequente, cruel e autoritário com seu próprio povo, sabendo da iminente destruição da Ucrânia, insiste e impõe o cativeiro de homens de 18 a 60 anos, destruindo famílias ucranianas, fato inédito no mundo.  Presidentes e líderes europeus de diferentes naipes oscilam entre a prepotência, a ingenuidade e o ressentimento; acham que o “outro” vai ceder, pura ilusão até porque sua vida depende da consolidação da sua auto-imago inflada e mais, pensam que são “aliados”, ainda que o distanciamento físico na foto oficial do recente encontro (não são negacionistas, afinal a pandemia da Covid 19 ainda está entre nós) deixa claro que cada um é um em sua soberania autocentrada e aparentemente segura. Com semblantes plácidos típicos daqueles que se sentem inatingíveis e superiores, posam para foto, tomada em contra-plougé, nas escadarias do símbolo majestoso, ostentatório e absolutista que é Versalhes (marketing ideológico casual de luxo, obrigada MD Chefe), um palácio deslumbrante e, aí sim, em uníssono, declaram: não podemos aceitar uma nação em guerra na União Europeia, sorry Ucrânia e ucranianos, mas, no melhor estilo europeu “o processo de adesão já começou”… O ressentimento europeu, que é histórico, tem suas raízes nos processos colonialistas de séculos atrás que provaram ao mundo sua necessidade de se colocarem como melhores que os outros por meio do massacre humano; as historinhas das “descobertas” precisam ser reescritas. É também resultado de duas guerras devastadoras em seu território e da sua incapacidade de vencer o inimigo, realidades que fizeram com que optassem pela narrativa conveniente do dia D, com protagonismo americano, como saída mais aceitável da humilhante e desumana situação, ao invés de reconhecer o papel decisivo dos russos na vitória – aqui também a “historinha” precisa ser reescrita.

Aprendemos que as motivações para guerra entre humanos, tem bases religiosas e/ou econômicas, no entanto, nesta em específico, há um eixo adicional que se sobrepõe ao mesmo tempo que fortalece os demais, que é o narcisismo desmesurado de alguns. Putin é o macho perturbado que precisa deixar isso claro, não basta ser é preciso parecer; acredita que é “o Grande” e necessita sustentar essa condição para o povo russo e para o mundo. Zelensky é o vaidoso oportunista bem conveniente ao ocidente, que tem recebido doses generosas de anabolizantes aceitas com afã pueril. Biden é o vovozinho tentando se safar do lugar humilhante de ter “iniciado” um mundo pós-americano (olha a China aí…). Líderes europeus desnorteados, mas que não perdem a linha e o ar da superioridade evidenciados nos códigos estéticos, éticos e comportamentais.

No meio de tanto orgulho, belicismo e narcisismo, ucranianos, russos e todos nós. Esta guerra já dá sinais do arrefecimento das posturas nacionalistas, da impossibilidade do multiculturalismo que já vinha desmoronando e da diluição dos ideais teóricos fundantes da globalização. Os constrangimentos sofridos por brasileiros, indianos e pretos na fronteira da Ucrânia é mais um sinal neste sentido. A midiatização de tudo isto é que estruturará os significados que conduzirão ao legado desta guerra e todos nós temos parte nisso; é também responsabilidade nossa. Visões reducionistas não cabem, simplesmente porque não dão conta da complexidade.

Mas, voltando a pergunta título que abriu este texto: o que significa cancelar o estrogonofe? Ou cancelar o Moscow mule nos bares nos EUA? Este último rebatizado como Kiev Mule, na linha da solidariedade ao povo ucraniano, sem qualquer referência ao fato de não ser uma criação russa. Significa por um lado a dificuldade ou mesmo incapacidade de estudar, conhecer a história e de articular a relação entre fatos econômicos, políticos, religiosos, identitários, portanto, simbólicos e psicanalíticos e suas consequências no cenário global, complexo, dinâmico e midiatizado; por outro, a força do marketing ideológico e sua raiz fundada na intenção de garantir visibilidade imediata, mesmo à custa de expor a intencionalidade mercadológica que é explícita aos olhos minimamente atentos.

Nossa caipiroska, a salada e a montanha russa estão em risco. Pobre de nós humanos, parece mesmo que não demos certo…

 

 

Clotilde Perez

Professora universitária, pesquisadora, consultora e colunista brasileira, é titular de semiótica e publicidade da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, concentrando seus estudos nas áreas da semiótica, comunicação, consumo e sociedade contemporânea. Ela é fundadora da Casa Semio, primeiro e único instituto de pesquisa de mercado voltado à semiótica no Brasil, já tendo prestado consultoria nessa área para grandes empresas nacionais e internacionais, conjugando o pensamento científico às práticas de mercado. Ela apresenta palestras e seminários no Brasil e no mundo sobre semiótica, suas aplicações no mercado e diversos recortes temáticos em uma perspectiva latino-americana e brasileira em diálogo com os grandes movimentos globais.

 

 

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Clotilde Perez
Professora universitária, pesquisadora e consultora
Clotilde Perez é professora universitária, pesquisadora, consultora e colunista brasileira, titular de semiótica e publicidade da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, concentrando seus estudos nas áreas da semiótica, comunicação, consumo e sociedade contemporânea. Fundadora da Casa Semio, primeiro e único instituto de pesquisa de mercado voltado à semiótica no Brasil, já tendo prestado consultoria nessa área para grandes empresas nacionais e internacionais, conjugando o pensamento científico às práticas de mercado. Apresenta palestras e seminários no Brasil e no mundo sobre semiótica, suas aplicações no mercado e diversos recortes temáticos em uma perspectiva latino-americana e brasileira em diálogo com os grandes movimentos globais.