O lugar de fala dos corpos nas mídias digitais

Publicado em

11/08/2021 15h35

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Dia desses, em uma apresentação sobre as imagens do corpo da escritora Clara Averbuck no pole dance apresentadas no instagram, comentando sobre as imperfeições, sobre a celulite ou até mesmo sobre o chamado ‘corpão’ dela, tinha a certeza de que falava sobre feminismo, sobre empoderamento. No entanto, uma interlocutora abordou a questão indicando que Clara era sim uma ativista, mas como seria se ela fosse uma mulher negra? A argumentação de que aquela fala tratava de desmistificar aquele corpo feminino que se apresentava às escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, em forte relação aos acontecimentos de 1922 na Semana da Arte Moderna, em que as fotos privilegiaram papéis masculinos desse evento como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, entre outros, justamente nesse mesmo lugar. As mulheres  estavam presentes, mas exatamente a foto emblemática as excluiu.

Vejamos, tratava-se de um corpo feminino, o de Clara, longe dos retoques tecnológicos que ajustam imperfeições, embora as fotos da autora dançando o pole dance continham uma produção de cenários, luzes, roupas e encenações. O que se destacava era justamente a exposição de um corpo de uma escritora bastante conhecida na mídia e claramente, perdão pelo trocadilho, convocava ao empoderamento proposto por ela. Ou seja, como diria Frida Kahlo, ‘meu corpo, minhas regras’ já passados quase cem anos da morte da pintora.

Esse mesmo empoderamento de corpos que se pode ouvir na minissérie Crônicas de São Francisco (2020-disponível Netflix) no bar ‘Corpos Políticos’. Uma das personagens volta depois de vinte anos àquela comunidade e discute a questão do feminismo. Esse olhar dos anos 60 vê aqueles corpos como afronta ao poder feminino. No entanto, esse feminismo do século XXI diz exatamente o contrário; os corpos são dessas mulheres e com eles elas fazem o que quiserem. Essa reflexão leva a pensar na exibição dos corpos em bailes funk disseminados pelas redes. Olhares do século passado veem na dança uma desmoralização do corpo feminino, ao mesmo tempo que nos anos 2000 essas mulheres não se veem como objetos do desejo masculino, mas como sujeitos de seus próprios desejos. Quem diria sobre Anitta que o corpo da cantora é objeto? Ela faz desse corpo um sujeito que fala. Um lugar de fala?

Lugar de fala remonta à Djamila Ribeiro que teceu sobre a expressão várias considerações na coleção Feminismos Plurais por ela coordenada. Citando Márcia F. Amaral, explica que se trata na comunicação de instrumento teórico, metodológico para a concessão de espaço a discussões em relação a posições sociais simbólicas. Para explicar um discurso é preciso conhecer o grupo em que ele funciona. Nesse sentido, Anitta está nesse lugar com seu show das poderosas. Clara Averbuck como feminista e ativista também. Empoderada.

Uma outra questão se impõe. Voltando à apresentação sobre o pole dance de Clara e sobre fotos de Anitta, o lugar de fala requer mais entendimento. Segundo Djamila em Lugar de Fala (2020) e as impressões das minhas interlocutoras durante a apresentação citada, vem uma pergunta? Clara Averbuck aparece nas fotos com o cabelo loiro, ela é branca. Anitta em recente polêmica em que foi acusada de racismo nas redes apareceu em uma foto com os cabelos loiros com a legenda ‘vida de patroa’ e ao fundo a imagem de Ludmilla, também cantora funk, negra. A reação indicou racismo por entender que Anitta loira tendo ao fundo Ludmilla negra encarnou a primeira como patroa e a segunda como empregada. Considerando as vozes silenciadas, é preciso pensar que homens brancos cis estão no topo do poder. Homens brancos homo já não têm a mesma posição. Negros cis ainda mais abaixo. Homens negros homo…Até chegarmos às mulheres, é preciso ainda pensar em mulheres cis brancas, mulheres brancas e homo, mulheres cis negras, mulheres negras LGBTQIA+; a história de empoderamento vai ficando mais e mais difícil. Preconceitos aumentam. Então, fica mesmo difícil dar tanta importância a uma mulher branca dançando pole dance. Ainda que desbravando um corpo imperfeito. E no instagram.

Roseli Gimenes 

Coordenadora do curso de Letras da UNIP

Coordenadora do projeto Cultura em Foco do Instituto Legus

Professora no curso Semiótica Psicanalítica PucSP

Pós doc em Comunicação e Semiótica PucSP

Doutora em Tecnologias da Inteligência e Design Digital PucSP
Mestre em Comunicação e Semiótica PucSP

 

 

Clotilde Perez
Professora universitária, pesquisadora e consultora
Clotilde Perez é professora universitária, pesquisadora, consultora e colunista brasileira, titular de semiótica e publicidade da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, concentrando seus estudos nas áreas da semiótica, comunicação, consumo e sociedade contemporânea. Fundadora da Casa Semio, primeiro e único instituto de pesquisa de mercado voltado à semiótica no Brasil, já tendo prestado consultoria nessa área para grandes empresas nacionais e internacionais, conjugando o pensamento científico às práticas de mercado. Apresenta palestras e seminários no Brasil e no mundo sobre semiótica, suas aplicações no mercado e diversos recortes temáticos em uma perspectiva latino-americana e brasileira em diálogo com os grandes movimentos globais.