O algoritmo é o Outro

Publicado em

10/11/2021 13h00

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Felipe e Tiago são um jovem casal de psicólogos, formados há pouco tempo e que estão dando os primeiros passos no atendimento psicanalítico. Felipe é estudioso e já está fazendo o terceiro curso de pós-graduação, de especialização. Posta no Instagram (tem 314 seguidores) assuntos da sua pesquisa, com estatísticas e reflexões. No entanto, queixa-se de que tem pouquíssimos pacientes no seu consultório. Decidiu seguir a sua ética profissional de nunca postar eventos da sua vida particular. O Tiago não gosta de ler, muito embora esteja sempre comprando livros que lotam as prateleiras do apartamento e ficam eternamente à espera de serem lidos. Posta do Instagram (tem 2.322 seguidores) tudo, absolutamente tudo o que acontece na sua vida, mas sempre realizando perguntas para que os internautas participem e deixem a sua opinião. Assim que acorda, posta fotos do café da manhã e pergunta se deveria comer uma fatia de melão ou um pedaço de maçã. O seu gato, o Frederico, aparece postado todos os dias, comentando tudo o que faz e solicitando que os internautas decidam o que fazer (se fez arte, deveria ficar de castigo sem comer um biscoitinho?). Claro que a relevância social dos posts do Tiago é efetivamente zero. Mas, esqueci de contar que o Tiago tem a agenda do consultório lotada. Não consegue abrir mais um horário para ninguém. Ele alimenta o imaginário dos seguidores que indicam as escolhas que ele deveria fazer, quiçá como uma forma de não se implicar com a própria vida.

 

Essa vinheta clínica é real, mas com as distorções que exige a ética profissional. O Felipe está preocupado com o exercício da profissão, se capacita constantemente e guarda a distância necessária para não afetar a transferência com os analisantes. O Tiago não está nem aí com proteger a sua vida privada nem sequer a sua vida íntima. O Felipe está no dilema de como fazer para ter mais pacientes. O Tiago encaminha para os colegas porque não tem mais horários. Ele sacou que o postulado que assinalava Bauman de que quem não é visto não existe lhe serviria para a sua carreira profissional, mesmo que burlando os preceitos básicos. Bolso vazio não faz milagres. Considera que esse é o melhor dos investimentos, fazer a métrica crescer constantemente. Em termos benjaminianos, o Tiago está na vivência, nas estatísticas, na quantidade… o Felipe aposta na experiência, na transmissão, no pensamento crítico.

 

Mas, ambos estão submetidos à lei que vigora nestes dias: O algoritmo é o grande outro lacaniano (Outro). Não faz muitos anos podia ser apontado o Mercado, a Mídia, o Marketing, a Moda… Hoje tudo pode ser resumido e concentrado no algoritmo.  A ética de fazer a métrica aumentar para muitos se impõe como o ideal a alcançar. Portanto, a ética que for escolhida definirá as quantidades ou as qualidades. A forma ou o conteúdo. O saudoso Saramago nos lembrava, nos tempos de ouro do Twitter, com os 140 caracteres como paradigma, o reino no monossílabo, que desse jeito, de degrau em degrau iríamos descendo até o grunhido.

 

Ninguém pode desconhecer os grandes avanços da técnica, como hoje se tem recursos quase imensuráveis para melhorar as nossas vidas. Isso é um ponto pacífico. No entanto, talvez não seja coincidência (mais uma estatística) que, pela primeira vez, a geração atual tem um Q.I menor que a anterior, quando sempre se esperou que a geração posterior superasse sempre a anterior.

 

O empobrecimento psíquico parece ser uma realidade constatada de maneira empírica. O grande sintoma da cultura atual? Terá se convertido em realidade o desejo do neurótico de se eximir de sustentar o próprio desejo? Talvez estamos delegando na métrica a razão pela qual vale a pena viver…

 

 

Claudio Montoto

Psicanalista, Doutor em comunicação e semiótica pela PUC-SP e Professor do curso Cultura Material e Consumo: perspectivas semiopsicanalíticas da ECA USP.

 

 

Clotilde Perez
Professora universitária, pesquisadora e consultora
Clotilde Perez é professora universitária, pesquisadora, consultora e colunista brasileira, titular de semiótica e publicidade da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, concentrando seus estudos nas áreas da semiótica, comunicação, consumo e sociedade contemporânea. Fundadora da Casa Semio, primeiro e único instituto de pesquisa de mercado voltado à semiótica no Brasil, já tendo prestado consultoria nessa área para grandes empresas nacionais e internacionais, conjugando o pensamento científico às práticas de mercado. Apresenta palestras e seminários no Brasil e no mundo sobre semiótica, suas aplicações no mercado e diversos recortes temáticos em uma perspectiva latino-americana e brasileira em diálogo com os grandes movimentos globais.