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Luxo e lixo: Balenciaga e a estética do incômodo social

Publicado em

18/05/2022 08h43

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Bastou surgir um tênis com estética suja e destruída no lançamento de uma campanha da badalada grife Balenciaga para que a internet entrasse em um estado rápido de euforia e muitos julgamentos. O motivo da repercussão que rendeu à grife ser trend topic no Twitter e pauta para muitos veículos jornalísticos nesta última semana? O valor da peça (cerca de R$ 10 mil) X estética do produto.

 

A superficial discussão nas redes sociais ficou em torno do que há muito tempo já nos é dado sobre a indústria do luxo: alto preço, significados simbólicos, poder de marca e status. Inicialmente, o incômodo maior da audiência foi ver algo tão ordinário para a maioria da população, como um tênis sujo e destruído, tornar-se um acessório extremamente superestimado.  Logo, não teve jeito: o incômodo virou ódio como resposta imediata. Mas há muitas reflexões que podem e devem ser extraídas neste micro contexto.

 

Vale lembrar, como por muitos artigos publicados aqui neste site por profissionais e pesquisadores, que o consumo estrutura as dinâmicas e relações sociais. É no consumo que o indivíduo se reconhece cidadão, pois é o consumo que insere ou exclui o indivíduo de espaços sociais. É na centralidade do poder do consumo que se articula e impera gostos, estilos e classes sociais. E neste caso, em específico, o poder estabelecido pela Balenciaga no campo social, por uma dinâmica da disseminação da teoria do gosto e da construção dos valores simbólicos, evidencia a desigualdade de uma sociedade. Desigualdade não só econômica-social, mas, também cultural, por deixar claro quem dá as regras sobre o que tem valor estético ou não.

 

Por aqui, a complexidade do consumo consegue ser explicada pelo olhar antropossemiótico. Há o deslocamento do ritual de consumo do descarte, simbolizado por um tênis-quase-lixo, para um ritual de posse, que ganha ressignificação estética para um lugar de exclusividade, onde poucos podem usufruir. Lugar esse que o luxo reorganiza os significados de um objeto de uso mainstream para reinar com soberania entre seus consumidores abastados.

 

O fenômeno pode ser ainda melhor explorado. A questão que podemos colocar holofote é que moda não é somente sobre roupas ou vestir. Ela é uma manifestação social de um tempo, que é capaz de transbordar para o mundo as potências sensíveis de um zeitgeist. E o que o diretor criativo Demna Gvsalia traz em forma de um produto de moda é a reflexão sobre os tempos atuais: o incomodo pelo consumo excessivo e o desejo veloz pela próxima novidade. É o questionamento sobre toda a cultura da descartabilidade. A estética da destruição enaltecida pela grife Balenciaga indaga o próprio sistema da moda, no qual tem a obsolescência programada como parte imperativa da lógica da sua produção.

 

E mais: o designer georgiano elucida de forma prática, diante de um ecossistema publicitário e de dinâmicas de consumo, algo que já se discute no campo a acadêmico há algum tempo, que marca é mídia e mensagem; e que a publicidade também “é produto e não só discurso sobre seu objeto, ela é discurso-objeto”, como explica a pesquisadora Maria Aparecida Baccega, em artigo publicado, em 2018, no livro Comunicação e Culturas do Consumo.

 

O que fica do caso Balenciaga quando unimos as diferentes dimensões do consumo é que esse tênis destruído revela muito do que somos e nem imaginamos. Um tênis como esse serviu para mostrar toda a complexidade que é compreender as relações do indivíduo e diferentes grupos frente à sociedade de hiperconsumo, além de um desconforto social que possibilita reflexões e questiona os limites éticos do consumo.

 

Andreia Meneguete

É jornalista. Especialista em Comunicação de Moda e Cultura Material e Consumo. Professora do MBA de Moda da Escola de Comunicações e Artes da USP.

Clotilde Perez
Professora universitária, pesquisadora e consultora
Clotilde Perez é professora universitária, pesquisadora, consultora e colunista brasileira, titular de semiótica e publicidade da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, concentrando seus estudos nas áreas da semiótica, comunicação, consumo e sociedade contemporânea. Fundadora da Casa Semio, primeiro e único instituto de pesquisa de mercado voltado à semiótica no Brasil, já tendo prestado consultoria nessa área para grandes empresas nacionais e internacionais, conjugando o pensamento científico às práticas de mercado. Apresenta palestras e seminários no Brasil e no mundo sobre semiótica, suas aplicações no mercado e diversos recortes temáticos em uma perspectiva latino-americana e brasileira em diálogo com os grandes movimentos globais.