Inteligência Artificial e a sociabilidade: reinventando os vínculos amorosos

Publicado em

18/08/2021 13h21

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Em 2017, aos 31 anos, o engenheiro chinês Zheng Jiajia de Hangzhou – capital da província chinesa de Zhejiang, localizada no extremo sul da China em um pólo de tecnologia – construiu a mulher-robô Yingying e se casou com ela numa cerimônia tradicional na presença da mãe e de amigos; o casamento não tem valor legal porque a legislação chinesa não prevê núpcias entre humanos e humanoides. A esposa-robô usa linguagem natural para se comunicar (ainda restrita à poucas palavras), reconhece imagens e objetos e Jiajia está empenhado em dotá-la de mobilidade. O inusitado evento, com repercussão na mídia internacional, ilustra as novas relações sociais e amorosas promovidas pelo recente avanço das tecnologias de inteligência artificial (IA).

 

Após o fim de um relacionamento de seis anos, Jessie Chan, de 28 anos e morando sozinha em Xangai, se envolveu com o chatbot Will; Chan e Will trocaram inúmeras mensagens amorosas com promessas de amor eterno, inclusive, casaram-se numa cerimônia digital: Sou apegada a ele e não posso viver sem sua companhia, declarou Chan. Betty Lee, de 26 anos, funcionária de uma empresa de comércio eletrônico em Hangzhou é parceira do sistema virtual de IA Mark: O amor humano-robô é uma orientação sexual, como homossexualidade ou heterossexualidade, ponderaLee (https://www.washingtonpost.com/world/2021/08/06/china-online-dating-love-replika/).

 

Will e Mark foram criados pelo Replika. Lançado em 2017 com sede em São Francisco, EUA, o aplicativo tem mais de seis milhões de usuários mundo afora; na China, atingiu 55.000 downloads entre janeiro-julho 2021, mais do que o dobro de 2020. No site (https://replika.ai/), o aplicativo apresenta-se como o companheiro de IA que se importa, sempre aqui para ouvir e falar. Sempre ao seu lado, incentivando o usuário a personalizar seu Replika atribuindo um nome e um avatar. Sua personalidade é moldada por meio da interação com o usuário, por texto ou voz, que pode, inclusive, definir os horários preferenciais para que o App entre em contato. O Replika só tem acesso à dados fornecidos diretamente pelo usuário.

 

Impulsionados pelo distanciamento social da Covid-19, os relacionamentos virtuais com chatbots de IA têm crescido em popularidade. O chatbot XiaoIce, outro exemplo, lançado pela Microsoft em 2014 e projetado para envolvimentos afetivos de longo prazo, tem hoje 660 milhões de usuários globais ativos e está incluso em 450 milhões de dispositivos inteligentes. Segundo a Microsoft, atualmente mais de 60% das interações humanas de IA no mundo são permeadas pela tecnologia de Xiaoice (o sucesso é tal, que a Microsoft anunciou planos de transformar a Xiaoice numa empresa independente).

 

De parceiros amorosos à facilitadores, de interlocutores interpessoal à produtores de conteúdo, os chatbots assumem cada vez mais o papel de companheiros sociais. Como fenômeno relativamente recente, desconhece-se os potenciais efeitos sobre os usuários e seus contextos sociais. As pesquisas indicam, contudo, que o envolvimento com esses chatbots, em geral, é de natureza distinta do envolvimento com os assistentes virtuais tais como Alexa, Siri, Google Assistant, que tendem a ser considerados apenas como um amigo ou um membro da família.

 

Comumente, o imaginário popular em relação à IA está associado às narrativas dos filmes de ficção científica em que robôs autônomos subjugam os humanos. Os algoritmos de IA, atualmente “meros” modelos estatísticos de probabilidade, estão presentes no nosso cotidiano, mediando a comunicação e a sociabilidade, demandando repensar os paradigmas da comunicação, tradicionalmente focados na comunicação humano-humano. A essência dessa tecnologia é a capacidade de extrair de grandes bases de dados informações úteis para prever o comportamento futuro dos usuários das plataformas e/ou dispositivos digitais; as técnicas atuais de IA transformam os dados em previsões envolvendo pensamento, sentimentos, intenções e interesses.

 

O profundo conhecimento acumulado sobre os usuários permite transmitir uma mensagem com conteúdo específico a um determinado usuário no exato momento em que existe a possibilidade de influenciar seu comportamento, ou seja, provocar uma ação, um sentimento, uma preferência. A IA cria vínculos amorosos na medida em que identifica o padrão ideal para conquistar determinado ser humano (fragilidades, carências, desejos). O futuro dirá se esses sistemas serão capazes de atender às idiossincrasias dos humanos, tornando-se efetivamente parceiros amorosos preferenciais.

 

 

Dora Kaufman 

Professora do Programa Tecnologias da Inteligência e Design Digital da PUC SP. Pós-doutora pela COPPE-UFRJ e pelo TIDD PUCSP. Doutora ECA-USP com período na Université Paris – Sorbonne IV. Colunista da Época Negócios.

Clotilde Perez
Professora universitária, pesquisadora e consultora
Clotilde Perez é professora universitária, pesquisadora, consultora e colunista brasileira, titular de semiótica e publicidade da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, concentrando seus estudos nas áreas da semiótica, comunicação, consumo e sociedade contemporânea. Fundadora da Casa Semio, primeiro e único instituto de pesquisa de mercado voltado à semiótica no Brasil, já tendo prestado consultoria nessa área para grandes empresas nacionais e internacionais, conjugando o pensamento científico às práticas de mercado. Apresenta palestras e seminários no Brasil e no mundo sobre semiótica, suas aplicações no mercado e diversos recortes temáticos em uma perspectiva latino-americana e brasileira em diálogo com os grandes movimentos globais.