Geração dopamina

Publicado em

06/04/2022 11h17

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No caminho das reflexões sobre as gerações e o espírito do tempo, chama a atenção a disposição sistemática para atenuar, desculpar e perdoar atitudes e comportamentos bastante condenáveis, caso fizéssemos a mínima consideração acerca do outro, seja esse outro quem for. Vivemos, como bem atesta Anna Lembke (2021), em seu livro Dopamine Nation, uma Era da Indulgência. Estamos imersos na dificuldade de imposição de limites, por parte de todos aqueles a quem se atribui, confia e espera, tais limites. Dos pais afogados na onda dos afetos ilimitados (ótimo, não fosse o transbordamento narcísico que mais revela um amor por si próprio…), sem qualquer tipo de construção educativa de cunho ético e moral, estabelecendo o que pode e o que não pode (acreditem, há “coisas” que podem e outras que “não podem”, ou até podem, mas as consequências podem ser bem indesejáveis). Passando pelas instituições que seguem na função de permitir o desenvolvimento de crianças e jovens tornando-os preparados para uma cidadania plena, onde todos devem ter as mesmas possibilidades. Escolas, entidades religiosas, universidades etc., seguem mais tensionadas e reativas ao zeitgeist do que propositivas nesta missão.

Soma-se a tudo isto, o mundo atravessado pelo digital, viabilizado pelo fetiche das redes sociais e aplicativos acessíveis pelos smartphones com tecnologias, design e gadgets fantásticos, que adicionam novas camadas de imersão em mundos de prazer, descontração e regozijo fácil e imediato. Um mundo liso, sem nuanças, resistências ou oposições. O mundo da positividade tóxica, para seguirmos as reflexões de Chul-Han em Sociedade do Cansaço (2017), No Enxame (2018) e Agonia de Eros (2017) e Sociedade Paliativa (2021). Vivemos um mundo de abundância, de drogas, games, produtos, informações, livros, shows, roupas, redes sociais, apps de compras, entregas imediatas, que proporcionam uma espécie de injeção de dopamina 24horas por dia, todos os dias. Esse mediador químico que proporciona bom funcionamento do cérebro e sensação de prazer, vem sendo estudado a exaustão por equipes multidisciplinares que procuram compreender seus efeitos a partir das estimulações externas ao corpo e seu grau de dependência. Ou seja, a propensão à adição a partir da experiência de excitação prazerosa constante. 

Nossas contradições e tensionamentos seguem como uma marca identitária destes tempos atuais. Uns vivendo a sensação de prazer 24/7, no excesso de positividade, outros sem ter o que comer, sem trabalho, sem dignidade, sem segurança física e psíquica, sem nada. Parece que ao cabo, todos seguimos em desespero, ainda que por caminhos bem diferentes.

Clotilde Perez

Professora universitária, pesquisadora, consultora e colunista brasileira, é titular de semiótica e publicidade da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, concentrando seus estudos nas áreas da semiótica, comunicação, consumo e sociedade contemporânea. Ela é fundadora da Casa Semio, primeiro e único instituto de pesquisa de mercado voltado à semiótica no Brasil, já tendo prestado consultoria nessa área para grandes empresas nacionais e internacionais, conjugando o pensamento científico às práticas de mercado. Ela apresenta palestras e seminários no Brasil e no mundo sobre semiótica, suas aplicações no mercado e diversos recortes temáticos em uma perspectiva latino-americana e brasileira em diálogo com os grandes movimentos globais.

 

 

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Clotilde Perez
Professora universitária, pesquisadora e consultora
Clotilde Perez é professora universitária, pesquisadora, consultora e colunista brasileira, titular de semiótica e publicidade da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, concentrando seus estudos nas áreas da semiótica, comunicação, consumo e sociedade contemporânea. Fundadora da Casa Semio, primeiro e único instituto de pesquisa de mercado voltado à semiótica no Brasil, já tendo prestado consultoria nessa área para grandes empresas nacionais e internacionais, conjugando o pensamento científico às práticas de mercado. Apresenta palestras e seminários no Brasil e no mundo sobre semiótica, suas aplicações no mercado e diversos recortes temáticos em uma perspectiva latino-americana e brasileira em diálogo com os grandes movimentos globais.