Ciência, opinião e dogma, coisas bem diferentes!

Publicado em

02/12/2020 10h30

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Artigo

 

Ainda que a ambiguidade, a transitoriedade e os amálgamas sejam características da nossa sociedade, compreendida como pós-moderna, há a necessidade de mantermos a precisão e as especificidades em alguns âmbitos da vida. Umberto Eco (1932-2016) semioticista e escritor italiano, em seu discurso por ocasião da cerimônia na qual recebeu o título honoris causa pela Universidade de Turim, em 2015, afirmou que as redes deram direito à palavra a uma legião de imbecis que antes falavam apenas em um bar e depois de uma taça de vinho, sem prejuízos à coletividade. Apesar da acidez, fica vidente que o que está em questão em sua fala são as consequências do uso inapropriado e impreciso, para não dizer intencional de informações falsas comunicadas como verdade absoluta, decorrente das convicções ou da má intenção dos emissores. Nesse sentido, é fundamental distinguirmos o que é opinião, do que é ciência e do é dogma, coisas bem diferentes.

 

A opinião é a expressão descompromissada de valores éticos e estéticos adquiridos e reconfigurados ao longo da vida. Com origem no latim opinio ou doxa em grego, a opinião está relacionada a um modo de pensar, de ver os fenômenos do mundo e de julgá-los. Trata-se de um ponto de vista sobre determinado assunto, fenômeno ou pessoa, sem a preocupação com a comprovação, ou seja, sem garantir a existência de fundamento para tal afirmação ou julgamento. Para os gregos a doxa é uma ideia desordenada, sem clareza, acerca da realidade e que por isso, se opõe ao conhecimento verdadeiro. Seu entendimento mais explícito é crença, de onde vem as palavras ortodoxo (que segue e professa padrões, leis, dogmas etc.) e heterodoxo (que contraria normas, padrões, dogmas etc.), por exemplo. Assim, a opinião não está fundamentada na verdade, mas sim, no entendimento sobre ela, que pode sofrer inúmeras influências e subjetivações, e, nesse processo, muitas distorções. Ensino institucionalizado, formação familiar, origem, religiosidade, posições políticas, conveniências circunstanciais, entre outros aspectos, atuam diretamente na formação das nossas opiniões. As opiniões têm seu valor nos contextos sociais livres onde o que está em questão é a interação com o outro descompromissada para obter a atenuação de uma dúvida ou apoio a um entendimento prévio. Muitas vezes iniciada com “eu acho…” instauram um caminho, uma perspectiva possível, uma expressão do gosto ou entendimento de quem a emite e, nesse contexto, pode assumir o valor da pluralidade, como quando falamos “quero ouvir outra opinião” e perguntamos para a vendedora da loja sobre o caimento da roupa que estamos experimentando.

 

Bem diferente é a ciência. Pautada na busca do conhecimento por meio do método científico, fundado na demonstração, nos raciocínios experimentais e na análise, a ciência aspira a verdade. Podemos encontrar segmentações diversas como a separação entre ciências formais, experimentais e sociais ou outras abordagens como produtivas, práticas ou teoréticas (classificação de Aristóteles), matemáticas, humanas e sociais e sociais aplicadas ou exatas, humanas e biológicas. No entanto, independente da segmentação, o que há em comum na ciência é o compromisso de fazer avançar o entendimento humano sobre o universo. Assim, ciência é o estudo racional e rigoroso direcionado aos fatos restritos à realidade, ainda que gerais e abrangentes. A ciência explica os fenômenos obedecendo a leis que são verificadas por meio do método científico, excluindo por completo as convicções não comprováveis na realidade. Deve ser cética e secular, ou seja, sem crenças, apartada de qualquer dogma e que subsiste no tempo até que uma outra teoria comprovada cientificamente se revele.

 

Já o dogma é um conceito teológico de origem grega e estabelece um ponto fundamental de uma doutrina religiosa, apresentando este aspecto como certo e indiscutível. Dogma não permite qualquer abertura à dúvida ou questionamento; é um pensamento firme, uma convicção, uma certeza, uma crença. Também pode ser compreendido como uma verdade revelada fundada na fé absoluta, portanto, inquestionável. Trata-se de uma forma como determinada igreja percebe, entende e crê as várias doutrinas bíblicas que não encontram na ciência respaldo factível. Um dogma é uma autêntica verdade revelada por Deus, por isso, inalterável, definitiva e imutável. Um dos dogmas mais conhecidos da Igreja Católica é o da Santíssima Trindade (o pai, o filho e o espírito santo) e cada um deles também se manifesta em dogmas, como a certeza da existência de deus, a dupla natureza de Jesus Cristo, humana e divinal, a criação do mundo e vários outros como os dogmas sobre as últimas coisas que inclui morte, ressureição, céu, paraíso, inferno, purgatório e juízo final. Como fica evidente, não há qualquer vínculo de sentido com a realidade comprovável por meio da ciência, seu valor está na fé e na crença. Daí a sabedoria popular em afirmar “religião não se discute”.

 

Como vimos, a ciência se opõe à opinião e ao dogma, uma vez que não lhe cabem a consideração sobre achismos, superstições e crenças, como fica evidente na afirmação do filósofo e poeta francês Gaston Bachelard (1884-1962) “a opinião pensa mal; não pensa”. Portanto, a opinião não tem compromisso maior, está no âmbito do senso comum e nada mais é do que a junção de saberes e quereres do cotidiano, com alto grau de subjetividade, portanto, de variabilidade extrema. Está baseada na rotina vivenciada sem buscar explicação científica, trata-se de uma concepção, juízo, uma posição pessoal. Por isso, a opinião não cabe quando apresentada com as vestes da verdade. E estas vestes podem se configurar como a validação de um ambiente, por exemplo, um veículo de mídia (tem a capacidade de “validar” uma fala) ou o lugar que a pessoa ocupa, um cargo ou função de reconhecimento. Ainda que os veículos institucionalizados busquem explicitar o que é ciência, análise com método e o que é opinião, o transbordamento midiático promovido pela expansão da cultura digital, emblemada pelas redes sociais, buscadores, aplicativos etc., não têm esse compromisso e com isso “igualam” ciência e opinião respaldados na ampla visibilidade de todos, indivíduos e instituições. A consequência desta igualdade do que não é igual, estamos chamando de Fake News e seus desdobramentos nefastos, implicando em destruição de reputações, conflitos, polarizações e erosão dos pilares fundantes da democracia e de uma vida cidadã.

 

Friedrich Nietzsche (1844-1900), filósofo prussiano, foi brilhante quando afirmou “A verdade e a mentira são construções que decorrem da vida no rebanho e da linguagem que lhe corresponde. O homem do rebanho chama de verdade aquilo que o conserva no rebanho e chama de mentira aquilo que o ameaça ou exclui do rebanho. (…) Portanto, em primeiro lugar, a verdade é a verdade do rebanho.” Do que podemos concluir que a verdade do rebanho são as convicções fundadas na vivência reduzida do cotidiano, dos valores restritamente comungados, mas que nos trazem segurança. O problema está no contexto em que as convicções podem ganhar a exponenciação expositiva das redes revestidas e recebidas como verdades. Mas, como não somos gado, sigamos na conduta de manifestar nossa opinião nas esferas descompromissadas das dinâmicas sociais com nossos conhecidos e amigos; do dogma circunscrito à privacidade e ao convívio dos que o compartilham (e o sabem como tal) e a ciência à esfera pública e irrestrita, pois esta é o caminho da verdade verificável sem crenças e convicções, o que implica em claras e contundentes políticas públicas de educação permanente.

 

Clotilde Perez

Professora universitária, pesquisadora, consultora e colunista brasileira, Clotilde Perez é titular de semiótica e publicidade da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, concentrando seus estudos nas áreas da semiótica, comunicação, consumo e sociedade contemporânea. Ela é fundadora da Casa Semio, primeiro e único instituto de pesquisa de mercado voltado à semiótica no Brasil, já tendo prestado consultoria nessa área para grandes empresas nacionais e internacionais, conjugando o pensamento científico às práticas de mercado. Ela apresenta palestras e seminários no Brasil e no mundo sobre semiótica, suas aplicações no mercado e diversos recortes temáticos em uma perspectiva latino-americana e brasileira em diálogo com os grandes movimentos globais.

Clotilde Perez
Professora universitária, pesquisadora e consultora
Clotilde Perez é professora universitária, pesquisadora, consultora e colunista brasileira, titular de semiótica e publicidade da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, concentrando seus estudos nas áreas da semiótica, comunicação, consumo e sociedade contemporânea. Fundadora da Casa Semio, primeiro e único instituto de pesquisa de mercado voltado à semiótica no Brasil, já tendo prestado consultoria nessa área para grandes empresas nacionais e internacionais, conjugando o pensamento científico às práticas de mercado. Apresenta palestras e seminários no Brasil e no mundo sobre semiótica, suas aplicações no mercado e diversos recortes temáticos em uma perspectiva latino-americana e brasileira em diálogo com os grandes movimentos globais.