A causa da publicidade

Publicado em

16/12/2020 08h00

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Artigo

Se alguém acha que a publicidade de causa, o marketing com propósito e as marcas empáticas são assuntos recentes, pode ter certeza: não são. Talvez essas expressões, desse jeito que aparecem, sejam de fato novas, mas a relação entre o universo do marketing e as questões ditas sociais é antiga. Nem se precisa ir tão longe, resgatando eventualmente Marx, quando ele diz que, “no consumo, o produto desaparece do movimento social, convertendo-se diretamente em objeto e servidor da necessidade individual e satisfazendo-a com o desfrute”. Basta ir a Kotler mesmo, lembrando que são dos anos 70 seus textos sobre marketing social e marketing societal. Estão aí o gérmen – ou o ovo da serpente, depende – e as bases desse fenômeno que hoje se vê com tanta recorrência, esse entrelaçamento entre o discurso publicitário e as questões sociais. Isso sem falar em Oliviero Toscani, fotógrafo-publicitário-escritor que, com as suas propagandas para a Benetton dos anos 80, mostrou a muita gente que era possível alertar para questões urgentes e ainda vender camisetas coloridas.

 

Até porque, no fim das contas, a publicidade, como modalidade comunicacional, a gente sabe, só existe em função do estímulo à compra, ao consumo. Fale-se do que se quiser falar, a mensagem principal é uma só: compre. Mesmo quando fala de felicidade, a propaganda está fazendo supor que essa tal felicidade só se alcança abrindo uma latinha de refrigerante – ou de cerveja, ou um frasco de perfume ou uma caixa de bombons. Ainda que trate de gentileza (no trânsito), o intuito da publicidade é fazer o motorista preferir esta àquela marca de seguros. O evidente processo de algo que se poderia chamar de desmaterialização da publicidade, que passa a tratar mais de valores do que de produtos, não pode obnubilar o fato inquestionável de que, em última instância ou em alguma medida, o que se quer com a publicidade é – se não apenas, para não sermos radicais – primeiro fazer comprar.

 

Da felicidade e da gentileza – e da real beleza, do se sujar faz bem e do leia para uma criança – ao respeito, ao empoderamento, à diversidade etc., foi um pulo. Um pulo arriscado, ainda que bem sucedido do ponto de vista comercial, que foi potencializado por um contexto de esvaziamento simbólico das instituições públicas, políticas e governamentais. Foi justamente quando os governos passaram a encarar os dilemas sociais mais graves do país por meio do acesso ao consumo que as marcas se atiraram de vez a um discurso supostamente engajado, passando a falar mais diretamente de causas sociais. Não é que os governos tenham deixado de investir em outras áreas, como saúde, educação, saneamento básico, combate ao racismo. É que os anos de bonança econômica por que passamos no início deste século foram diretamente relacionados com o incentivo ao consumo. Assim nos mostraram os pronunciamentos oficiais, replicaram as reportagens e as entrevistas da imprensa, reiteraram analistas de todos os tipos. Quem não se lembra da crise-marolinha, minimizada, como se disse na época, muito por efeito de um mercado interno estimulado a consumir, ávido por produtos oferecidos por setores beneficiados por reduções e isenções fiscais? Somem-se a isso as marcas vinculando seus produtos a valores sociais e temos o cenário perfeito, que nos circunda atualmente. Um cenário em que problemas de ordem pública – como a própria falta de saneamento básico, a violência à mulher e o racismo, por exemplo – são desviados para um discurso inevitavelmente individual, edulcorado, superficial, descartável: o discurso da publicidade.

 

Um discurso, inclusive, que se manifesta por meio de uma linguagem que hoje é absolutamente prevalente sobre qualquer outra. Se as pessoas atualmente só podem ser interpeladas na sua condição primordial de consumidoras, qualquer mensagem ou discurso que queira lhes tocar precisa assumir essa linguagem. Ou seja: precisa ser ágil, direta, sedutora, convincente, divertida, leve, bonita, agradável. Até aí tudo bem, quem não quer receber todas as mensagens assim? Aulas que nos façam morrer de rir, discursos presidenciais que nos encham de vaidade, livros de filosofia escritos como se fossem grandes long copies. O problema é que a publicidade, como Jean Baudrillard não nos deixa esquecer, “encontra-se para lá do verdadeiro e do falso”. Porque seus compromissos são outros, jamais podendo ser com a verdade (e um dia ainda vão escrever a respeito do quanto de há de espírito publicitário nas fake news) – nem com a produção do conhecimento, nem com o crescimento da razoabilidade, nem com a preservação da cultura, menos ainda com o desenvolvimento social. A contemporânea prevalência da linguagem e do discurso publicitário sobre as demais linguagens e discursos – político, governamental, artístico, científico, jornalístico – acaba fazendo com que todas as mensagens institucionais – portanto grande parte daquilo que preenche e povoa o que costumamos chamar de mundo ou vida – estejam comprometidas apenas com a preferência excludente, com o prazer individual imediato, com a diferenciação do que é igual e com o seu automático esvaziamento.

 

O que não quer dizer que a publicidade dita de causa, o marketing com propósito e as marcas empáticas não possam ou não devam existir ou até ser incentivados. Claro que sim. É mais do que esperado que as empresas, no modelo capitalista em que estamos, participem ativa e positivamente dos processos de desenvolvimento social. Só se deve tomar dois cuidados: (1) para que o discurso publicitário, sendo predominante, não venha a substituir completamente os demais discursos, entendendo que as marcas, as empresas e a publicidade devem participar das dinâmicas sociais dentro das suas limitações, em conjugação com instituições de outras naturezas; e (2) não se deixar levar pela opacidade produzida pela própria propaganda e acreditar que seria efetivamente através do consumo – e só através do consumo – que se alcançariam os valores desejados em um imaginado futuro melhor.

 

E também lembrar que, em um país como o nosso, de desigualdades sociais inacreditáveis, em que a miséria, a carência e o analfabetismo se naturalizam como paisagem, é a publicidade a única mensagem que chega a um imenso número de pessoas. Onde a escola e a agência bancária desistiram de estar, onde a água potável e a luz elétrica recusam chegar, onde o entretenimento e a arte se resumem a um pouco de música, televisão e celular, chegam as marcas, os produtos e as peças publicitárias. Onde não tem nada, tem publicidade. Não são poucas as pessoas em nosso país que de fato só serão interpeladas durante a vida pela publicidade. E só isso já faria com que a publicidade fosse em si uma causa. Mas tem mais. É ela quem ajuda a construir e a manter padrões estéticos – ou não é? O quanto não aprendemos com a publicidade o que são rostos, corpos, sorrisos, casas, pratos, festas, praias, ruas, cidades bonitos e perfeitos? É ela que apresenta – ou esconde – o que vai ser – ou não vai ser – reconhecido como aceitável, correto e familiar – ou não é? O quanto não nos acostumamos com a figura da criança mimada, do jovem alienado, da mulher fútil e do homem babaca vendo anúncios de tesouras, calças jeans, alvejantes e bancos?

 

A causa da publicidade está na visão de mundo que ela propõe às pessoas. Pode-se falar de antirracismo ou de mortadela, de sustentabilidade ou de detergente, desde que se proponha, em qualquer um dos casos, por meio de sua linguagem, um mundo diferente. Em que novos padrões estéticos se apresentem, mais inclusivos, generosos e diversos. Em que outras formas de vida – outros arranjos familiares, outros tipos de relacionamentos – se naturalizem, mais livres, mais igualitários. Em que a figura projetada do próprio consumidor não seja a daquele sujeito vil, que se contenta com pouco, ou seja, com aquilo que compra e consome. Mas que seja a de alguém que, tocado pela sensibilidade, desperto da inércia e dotado de inteligência, se revele capaz de e determinado a se engajar nas nossas tão necessárias causas.

 

 

 

Bruno Pompeu

Publicitário formado pela ECA-USP, doutor em Ciências da Comunicação pelo PPGCOM-USP, professor dos cursos de publicidade da ECA-USP e da ESPM-SP e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Universidade de Sorocaba (Uniso), sócio-fundador da Casa Semio.

Clotilde Perez
Professora universitária, pesquisadora e consultora
Clotilde Perez é professora universitária, pesquisadora, consultora e colunista brasileira, titular de semiótica e publicidade da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, concentrando seus estudos nas áreas da semiótica, comunicação, consumo e sociedade contemporânea. Fundadora da Casa Semio, primeiro e único instituto de pesquisa de mercado voltado à semiótica no Brasil, já tendo prestado consultoria nessa área para grandes empresas nacionais e internacionais, conjugando o pensamento científico às práticas de mercado. Apresenta palestras e seminários no Brasil e no mundo sobre semiótica, suas aplicações no mercado e diversos recortes temáticos em uma perspectiva latino-americana e brasileira em diálogo com os grandes movimentos globais.